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Três milhões sofrem de alergias: saiba como proteger-se

Em casa e na rua, saiba mais sobre as vacinas que já se fazem e conheça os tratamentos disponíveis em Portugal e leia as histórias de quem "convive" diariamente com o problema.
Carla Zibreira, 46 anos, podia ter sido veterinária. Mas como, se bastava aproximar-se de um dos boxers da família para o corpo reagir?! As alergias a animais, cão e cavalo, e também aos ácaros, desmotivaram-na. Não queria sentir todos os dias o nariz a fungar, os olhos lacrimejantes, aquelas comichões na pele e no couro cabeludo que a faziam desesperar – sobretudo na primavera e no início do outono. Desistiu da ideia e optou por Engenharia Eletrotécnica. "Os componentes dos circuitos sempre são mais limpinhos", diz à SÁBADO, em tom de brincadeira.
Os primeiros sinais de rinite alérgica surgiram na infância. Depois vieram as manifestações na pele. Foi mantendo a situação controlada até que, em 2015, passou a ter de viajar mais e o convívio com aviões e quartos alcatifados de hotel agravou subitamente – e de forma severa – os sintomas. "Estava permanentemente em crise. Todos os dias tomava dois anti-histamínicos, mas já nada fazia efeito. Tinha os olhos congestionados, o nariz a pingar, espirrava e tinha dores de cabeça, chegava a ter de me meter na cama para o corpo acalmar", explica.
Os sintomas descritos por Carla Zibreira são partilhados por quase um terço da população portuguesa: ao todo, cerca de três milhões de pessoas sofrem com alergias. Ou seja, o seu sistema imunológico reage de forma excessiva a alergénios, substâncias estranhas ao organismo, mas habitualmente inócuas. Basicamente, sempre que deteta uma substância interpretada como nociva, o organismo defende-se, produzindo em quantidade anticorpos da imunoglobulina (IgE) e libertando substâncias inflamatórias, nomeadamente a histamina, para os combater. E é nos locais onde se trava essa luta que a reação se mostra mais forte: nariz, garganta, olhos, brônquios, pele ou intestinos.
Na primavera, as atenções recaem sobretudo nas alergias respiratórias ou dermatológicas e o efeito dos pólenes (em Portugal, sobretudo gramíneas, parietária e oliveira) e doenças alérgicas como o eczema, a conjuntivite, a rinite ou a asma. No entanto, é importante ter a noção de que tão ou mais graves podem ser as alergias ao veneno de insetos, a medicamentos ou alimentos. A reação à picada de uma abelha ou ao contacto com a proteína da clara de ovo, por exemplo, pode ser de anafilaxia – um quadro reativo que leva à asfixia e pode ser mortal, se não for imediatamente contrariado com uma injeção de adrenalina. Esta realidade tem vindo a agravar-se, sobretudo nos países desenvolvidos – os sintomas de asma, por exemplo, afetam 20% das crianças de 6 anos do Reino Unido e da Irlanda, 10% das portuguesas e menos de 5% das albanesas, segundo dados do ISAAC, International Study of Asthma and Allergies in Childhood. E as perspetivas não são animadoras: a Academia Europeia de Alergia e Imunologia Clínica estima que, em 2025, o problema afete metade da população europeia. "O número de alergias está de facto a aumentar, provavelmente devido ao nosso meio ambiente, exterior e interior", diz à SÁBADO Antero Palma Carlos, professor jubilado de Medicina Interna e especialista em Imunoalergologia. A crescente higienização da sociedade e o consequente desequilíbrio do sistema imunitário, o recurso excessivo a antibióticos, aditivos alimentares e o aumento da poluição são algumas das justificações. Contudo, não é por acaso que o responsável pela criação da primeira consulta de alergia em Portugal, em 1962, no Hospital de Santa Maria, depois de décadas de prática clínica e mais de 800 artigos publicados, escolhe a palavra "provavelmente". A explosão de alergias das últimas décadas não está ainda inteiramente explicada.
O que está em causa
A base é genética – o risco de rinite alérgica aumenta 50% quando um dos pais é alérgico e ultrapassa os 80% quando ambos o são – mas a progressão rápida das alergias resulta de um complexo novelo de fatores. Já nos anos 90, os investigadores alertavam para o facto de os níveis de alergias na Alemanha Oriental terem disparado após a reunificação do país. E desde então diversos estudos têm vindo a apontar na direção da "teoria higienista" e a corroborar a ideia do aumento das alergias como uma consequência da poluição, um "preço do progresso" nas sociedades desenvolvidas.
As variáveis são tantas que a maioria dos estudos são muito parcelares. Mas, em 2016, a The New England Journal of Medicine, publicou um artigo que parecia conseguir ultrapassar alguns desses constrangimentos. Cientistas da Universidade de Chicago apresentavam uma possível explicação para as diferenças entre a prevalência de asma de apenas 5% das crianças amish do Indiana, que vivem em quintas unifamiliares, onde ainda se usam cavalos nos trabalhos agrícolas, e os valores anormalmente altos da doença (23%) entre os miúdos huteritas do Dakota do Sul, outra comunidade fechada, com a mesma base genética, mas que vive em grandes fazendas comunitárias muito mecanizadas. Segundo o estudo, a explicação estaria nas partículas de pó no ar e dentro das casas. Pela proximidade com os estábulos e celeiros, a poeira invisível em casas amish era "muito mais rica em produtos microbianos", o que estaria a ajudar o sistema imunológico inato das crianças a combater a asma. A relação desta doença com a poluição é também uma evidência. Em 2013, um estudo europeu cruzou dados sobre a proximidade das habitações de redes viárias com a prevalência de asma, e concluiu que a percentagem de casos de asma associados à poluição é muitíssimo elevada em Barcelona (23%) e bem mais baixa em cidades como Granada ou Estocolmo, na Suécia.
A "marcha alérgica"
O resultado infindável desse puzzle é ainda mutável ao longo da vida. E esse exacerbar dos sintomas e a progressiva alteração do padrão da doença deu origem ao conceito de "marcha alérgica". "Sabe-se que a dermatite atópica pesa na probabilidade de vir a ter asma, tal como quem tem eczema grave mais facilmente poderá ter uma alergia alimentar", explica o imunoalergologista Pedro Martins, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica (SPAIC).
Carla Zibreira toma desde 2016 uma vacina contra um determinado tipo de ácaros, os do armazenamento, um tratamento prescrito para cinco anos cujos efeitos são já notórios. Deixou os anti-histamínicos, já não se lembra de quando precisou de pôr gotas nos olhos e a entrada na primavera também deixou de a assustar. Mas em casa continua a não ter tapetes, a limpar o pó com um pano húmido e a ter todo o tipo de cuidados (ver caixa Proteger e Prevenir) – até por causa do gato.
Exemplo do que pode significar o conceito de "marcha alérgica" – que os médicos tentam travar a todo o custo –, Carla deixou a Fera entrar em casa e três meses depois teve uma primeira crise asmática.
Quando há dois anos os filhos lhe pediram um cão e ela sugeriu um gato, confiante no resultado de anteriores testes de alergias, estava longe de imaginar que escolher um animal de raça bengal pudesse fazer a diferença. Mas foi precisamente o que aconteceu. "Não sou alérgica a todos os gatos, mas sou alérgica ao meu! Tem a ver com a constituição química da saliva...", explica. Experimentou três testes, de laboratórios diferentes, teve confirmação do diagnóstico e já tentou tomar a vacina, mas o corpo não reagiu bem e vai esperar pelo fim da que está a fazer de momento.
Reações imprevisíveis
A alergia aos animais é precisamente o exemplo escolhido por Mário Morais de Almeida, presidente da Associação Portuguesa dos Asmáticos e coordenador do Centro de Alergia CUF, para explicar que a importância da avaliação clínica no diagnóstico das alergias. "Não faz sentido – e acontece – avançar com a retirada de animais de casa com base em resultados de exames, sem haver sintomas", diz à SÁBADO. A reação inversa à de Carla também se verifica – é comum a pessoa reagir a outros animais, mas não ao seu.
"Tem a sensibilização ao alergénio, mas ao mesmo tempo tem anticorpos de tolerância", explica o especialista em imunoalergologia. É por isso que Mário Morais de Almeida desaconselha a estas pessoas longos períodos sem animais. "Os donos de gatos gostam de fazer o luto e não ter logo outro, mas a minha sugestão é que assim que o gato começar a ficar velhinho, arranjar-lhe uma companhia. Se não o fizerem, depois pode não correr bem", explica.
Bom senso é essencial na gestão das alergias, defende o clínico. "Convém ver as etiquetas da roupa antes de decidir lavar tudo a 60%!", alerta. No que toca a prevenção, tomar todos os anos a vacina da gripe e evitar o fumo do tabaco podem ser as medidas que, de facto, fazem a diferença. Trata -se de controlar os fatores de agravamento e minimizar os sintomas. "Há coisas que não se conseguem evitar, mas se a pessoa é alérgica aos pólenes, ainda por cima fuma, e nesse dia está constipada... aí pode mesmo ir para ao hospital", exemplifica.
Os cuidados dependem da realidade de cada um. Filipe Martins, alérgico a ácaros e a pós, asmático, começou aos 8 anos a tomar uma vacina antialérgica. Parou há seis meses e com 14 anos faz uma vida normal. Joga hóquei em patins, tem sempre no saco "a bomba da asma", mas nunca sequer precisou. Foi aprendendo com a experiência a proteger-se. Os sintomas surgiam quando ficava constipado e essa passou a ser uma das suas preocupações: "comecei a ficar mais responsável e a ter mais cuidado, mudava de roupa assim que chegava a casa do treino, para não ficar suado, evitava correntes de ar", explica.
Controlar os sintomas
Não existe uma cura para as doenças alérgicas, são doenças crónicas. Travar a "marcha alérgica", controlar os sintomas e evitar crises é o poder que a medicina tem ao seu alcance – e é com esse objetivo que os médicos determinam o que fazer, entre uma panóplia de opções, em que se incluem medidas ambientais, recurso a fármacos e tratamentos de imunoterapia com vista à dessensibilização ao alergénio. É sempre um acompanhamento a longo prazo, individualizado. "Não existem doenças, existem doentes", sublinha Antero da Palma Carlos.
Entre os medicamentos mais utilizados estão os corticosteroides, potentes anti-inflamatórios tópicos ou nasais, mas sobretudo os anti-histamínicos, fármacos que bloqueiam a ação inflamatória da histamina. De acordo com o Infarmed, ao longo de 2017, foram vendidas mais de seis milhões de embalagens (6.127.288) e registaram -se dois picos de procura, em janeiro e maio, meses que, como o próprio relatório indica, "apresentam um maior nível de consumo, resultado respetivamente de síndromas gripais e alergias".
Os casos mais graves de asma ou urticária têm indicação para internamento e tratamento com medicamentos usados apenas nesse contexto e produzidos a partir de células vivas, como plantas e micro-organismos – soluções eficazes, mas que, "como acontece com todos os medicamentos biológicos implicam riscos, de reação local e anafilaxia", explica o imunoalergologista Pedro Martins. Além disso são caros, o que os torna desaconselhados para um sem -número de situações, já que "existem opções mais baratas e muito eficazes", explica Pedro Martins.
Vacinas para alimentos
A imunoterapia continua a ser o caminho mais utilizado e também o mais promissor. As chamadas "vacinas antialérgicas", injetáveis ou sublinguais, produzidas em laboratório, podem combinar quase a la carte vários alergénios – ácaros, polénes, gato, látex, etc. – e, apesar de aconselhar a toma por um período de três a cinco anos, começam a fazer efeito ao fim dos primeiros seis meses. Existem há mais de 30 anos para as alergias respiratórias e, apesar de ainda não estarem tão estudadas e generalizadas noutras áreas, para a imunoalergologista Sofia Luz, uma das criadoras da página Senhora Alergia, não há qualquer dúvida de que "nas alergias alimentares, esse é o futuro também".
Disponível no mercado, feita em fábrica, existe para já apenas a vacina para o pêssego. No entanto, nos hospitais centrais e algumas unidades privadas, os tratamentos de dessensibilização que são feitos para alergias aos medicamentos – que consistem numa exposição progressiva ao alergénio, em ambiente clínico vigiado – são também já feitos para algumas alergias alimentares.
"É como se estivéssemos a vacinar as crianças com leite, a reeducar o seu sistema imunitário a não reagir às proteínas do leite", explica Susana Piedade, imunoalergologista no Hospital CUF Descobertas. Os tratamentos demoram em média três a seis meses, e implicam além das visitas de algumas horas ao hospital de dia, a ingestão diária de uma pequena dose do alimento em causa. A especialista explica a abordagem que exige equipas muito especializadas e experientes, sendo esse é um dos motivos por que não está mais generalizada. Apesar disso, no seu hospital, conta, já foram dessensibilizadas ao leite dezenas de crianças e alguns adultos, tendo também sido já experimentada a dessensibilização de alérgicos ao ovo, ao trigo e ao peixe.
O objetivo é a dessensibilização total, a permitir uma dieta livre, mas mesmo quando não é atingido, e as doses toleradas são muito pequenas, as vantagens são evidentes. "Deixar de ter medo da reação por contacto acidental já é fantástico", comenta.
Deixar de ler os rótulos à procura da indicação ‘pode conter vestígios de’ faz a diferença. Além disso, estão a decorrer ensaios, nomeadamente na universidade de Stanford, nos Estados Unidos, que combinam estes tratamentos de dessensibilização com um dos medicamentos biológicos usados no tratamento da asma, o Omalizumab, um anticorpo monoclonal usado para reduzir a sensibilidade a alergénios e travar a cascata de sintomas alérgicos. Os investigadores estão otimistas, até porque o medicamento se tem mostrado eficaz no aceleramento da dessensibilização com amendoim, um dos mais poderosos alergénios.
Custos de 1.300 euros
As vacinas antialérgicas chegaram a ser comparticipadas a 50%, contra receita e através de reembolso, mas em 2010 isso deixou de acontecer e nenhum dos médicos ouvidos pela SÁBADO tem dúvidas do efeito dissuasor da medida. "Já foi reconhecido que se tratou de um erro, mas ainda não foi corrigido", diz Mário Morais de Almeida. O custo vai de 300 a 400 euros anuais (preço das vacinas sublinguais para as alergias respiratórias) até aos 1.300 euros uma vacina para o pêssego.
Apesar de eficaz, além de cara, a imunoterapia também não serve a todos. Mariana Vital, de 31 anos, tem asma, sofre de eczema atópico e é alérgica ao ovo e aos laticínios. "Aos 16 ou 17 anos, comecei uma vacina para as alergias respiratórias, mas não reagi bem e tive de interromper o tratamento", conta. Desde o primeiro diagnóstico, que a levou a um coma hospitalar induzido ainda antes de fazer 2 anos, Mariana tem pas- sado por diferentes fases. Corticoides, imunossupressores e sessões com radiação ultravioleta fazem parte de uma longa lista de tratamentos por que já passou. "Quando estava melhor da asma, piorava da pele", desabafa.
A última grande crise de alergias, aos 27 anos, coincidiu com uma promoção e o aumentar das responsabilidades – o stress é um dos seus piores inimigos. No mundo das alergias, ainda há muito por explicar e cada história é única. No seu caso, "não é UM alimento, não há UMA causa única, UM tratamento, o problema vai estar comigo a vida toda", explica com serenidade. Faz profilaxia diária, uma avaliação da função respiratória semestral e vai continuar a "apanhar frio" para evitar as comichões que lhe dão o calor e a ser acompanhada na consulta de imunoalergologia. Foi mãe há três meses e não interrompeu a medicação. A bebé, inteiramente saudável, chama-se Maria do Carmo.

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