"Na próxima semana, espera-se que estejam já sequenciados entre 30 a 40 genomas coronavírus SARS-Cov-2 de doentes portugueses."
O novo coronavírus
Para enfrentar o novo coronavírus, nada melhor do que sequenciar o seu genoma. Assim, conseguimos ver o seu íntimo e detectar as suas fraquezas e fortalezas. Em todo o mundo, já foram obtidos vários genomas do SARS-Cov-2. Em Portugal, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) sequenciou o genoma dos dois primeiros casos do novo coronavírus em Portugal. Espera-se que na próxima semana estejam já sequenciados entre 30 a 40 genomas de casos em Portugal. Este trabalho terá um contributo determinante no desenvolvimento de uma vacina e no aconselhamento das medidas de saúde pública a adoptar.
A China sequenciou o primeiro genoma do SARS-CoV-2 logo em Janeiro, o que permitiu desenvolver de forma rápida um teste genético que indica se a pessoa está ou não infectada. Entretanto, já foram tornados públicos mais de 400 genomas de casos em quase 30 países.
Os primeiros casos positivos em Portugal foram anunciados a 2 de Março. Tinha chegado então a vez de Portugal sequenciar o genoma do vírus destes casos. “Não há obrigatoriedade [para o fazermos], mas há o pedido para que as pessoas partilhem publicamente este tipo de sequências”, refere João Paulo Gomes, responsável do Núcleo de Bioinformática do INSA.
Tudo funcionou assim: começou-se por extrair e amplificar o material genético do vírus para que haja muitas amostras. Depois, foi utilizada a “sequenciação de nova geração” para se obter todo o genoma num curto período de tempo. Por fim, fez-se uma análise bioinformática do vírus. Mas, neste caso, só fica mesmo tudo pronto quando se depositam as sequências genéticas investigadas na base de dados pública GISAD. Já a plataforma bioinformática Nextstrain permitiu a integração de todos os genomas tornados públicos na GISAD. Aqui é “plantada” a árvore filogenética deste vírus, isto é, uma representação gráfica que mostra a proximidade entre os diferentes genomas de várias amostras de vírus. Quanto mais próximos estiverem nesta árvore, maior será a probabilidade de existir uma ligação epidemiológica entre eles.
Os dois casos
O que se viu então através da junção dos genomas com a informação epidemiológica dos casos portugueses? O primeiro caso é de um homem que reportou ter vindo de Itália e tinha passado pela Alemanha. “Não sabemos que passagem pela Alemanha foi essa. Mas sabemos que a sequência é idêntica a muitas outras reportadas em Itália, o que é compatível com a informação epidemiológica”, explica João Paulo Gomes.
O segundo caso é de outro homem que veio de Valência, em Espanha. Mas, “curiosamente”, na árvore filogenética fica próximo das sequências de Itália. “Apesar de não termos essa informação epidemiológica, muito provavelmente, a pessoa reportou ter vindo de Espanha e pode ter passado por Itália também”, extrapola o bioinformático. “A infecção de ambos deve ter sido contraída em Itália.”
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Árvore filogenética do novo coronavírus na plataforma bioinformática Nextstrain |
Um dos genomas tinha mais cinco mutações e o outro mais oito relativamente ao número de mutações dos genomas iniciais sequenciados na China. “Verificámos que o perfil mutacional do coronavírus que causou estes primeiros casos em Portugal enquadra-se no que é expectável”, clarifica João Paulo Gomes. “Na árvore filogenética, estão agrupados perfeitamente em relação a múltiplos outros genomas de vírus causadores de infecção de pessoas que têm o mesmo historial de viagem – ou seja, que passaram ou estiveram em Itália.”
Espera-se que o SARS-Cov-2 tenha, no máximo, duas mutações por mês, o que significa que já era expectável que tenha entre cinco a oito mutações. Essas alterações estão relacionadas com a mutação natural do vírus durante o processo infeccioso e à medida que vai passando de pessoa para pessoa. “[Nestes dois genomas] não detectámos mutações novas que outros [grupos de investigação] não tivessem detectado”, diz o bioinformático, explicando que é “pouco interessante” dizer o que se viu em cada um dos genomas, uma vez que ainda não se conhece o significado das mutações.
Humanos vs SARS-Cov-2
Agora, estamos em plena luta com o vírus. Nós atacamo-lo ao tentar reconhecer regiões que possam ser destruídas através de anticorpos do sistema imunitário. O SARS-Cov-2 enfrenta-nos ao modificar o seu genoma de forma aleatória. As mutações do vírus podem ser prejudiciais para o vírus se os anticorpos as reconhecerem. Assim, conseguimos derrotá-lo. Mas, se as mutações forem vantajosas para o vírus, escapam ao sistema imunitário. O SARS-Cov-2 passa a sobreviver mais facilmente no nosso corpo e vai-se transmitindo de pessoa para pessoa.
As mutações detectadas nos casos portugueses deverão ser vantajosas para o vírus. “Se tivessem sido prejudiciais, não as estávamos a apanhar em várias pessoas e já teriam desaparecido. Estamos a apanhá-las em pessoas aqui e outros países identificaram as mesmas sequências, o que significa que o tipo de mutações que estamos a encontrar é de alguma forma benéficas para o vírus. Não sabemos é em quê.” Para isso, será necessária mais investigação.
Mas, no fundo, estes dois genomas dos casos portugueses só foram cobaias de um trabalho de sequenciação maior. Espera-se que na próxima semana se tenham já sequenciado entre 30 a 40 SARS-Cov de casos em Portugal, o que também dependerá da colaboração com equipas clínicas. Dentro deste trabalho, pretende-se ter a maior parte dos casos que constituem o arranque das infecções em Portugal e todas as primeiras cadeias de transmissão sequenciadas. As cadeias de transmissão representam grupos de pessoas relacionadas epidemiologicamente devido à propagação de um vírus com uma sequência idêntica.
Das vacinas às medidas de contenção
A disponibilidade dos genomas do vírus sequenciados em todo o mundo será útil a curto e médio prazo no desenvolvimento de uma vacina. Uma vacina depende do perfil mutacional do vírus. Isto é, o vírus tem genes que codificam certas proteínas que são reconhecidas pelo sistema imunitário. As vacinas são desenvolvidas com base na sequência dessas proteínas e, por isso, é determinante conhecer todas as variantes das proteínas. Neste momento, há vários grupos de investigação a nível mundial a trabalhar na criação de uma vacina específica para o vírus SARS-Cov-2 que dá origem à doença covid-19.
A sequenciação, disponibilização e análise dos vários genomas pode também informar as autoridades do país quanto às medidas que devem ser tomadas. Vejamos: hoje sabemos que há seis cadeias de transmissão activas e que outras estão a ser investigadas, segundo revelou Marta Temido, ministra da Saúde, na terça-feira. A equipa de João Paulo Gomes pretende confirmar geneticamente essas cadeias de transmissão, bem como detectar a circulação de outras estirpes do SARS-Cov-2 que passam a ser responsáveis por cadeias de transmissão ainda desconhecidas.
Os estudos epidemiológicos traçam essas cadeias, mas a genética pode detectar algo que tenha escapado. Se durante a sequenciação de genomas existirem muitas sequências iguais às que já foram detectadas, quer dizer que têm de ter alguma ligação com os casos já detectados e com as mesmas cadeias de transmissão. Mas, se existirem diferenças nas sequências genéticas, indica que houve pontos de entrada em Portugal que os inquéritos epidemiológicos desconheciam e existem casos de transmissão na comunidade que não têm ligação com nenhum outro caso antes identificado. Este tipo de informação é muito importante na fase inicial da epidemia.
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